“A carne mais barata do mercado é a carne negra. (...) Que vai de graça pro presídio e para debaixo do plástico”, assim denuncia a letra da música “A Carne” de Elza Soares. Considerando os números de mortes de jovens negros no país, pode-se a canção que reflete a realidade do jovem negro brasileiro.
[endif]--De acordo com o Atlas da Violência de 2017, de cada 100 pessoas que sofrem homicídio no Brasil, 71 são negras. Os números avaliados nos anos de 2005 e 2015 demonstram que a taxa de homicídios de pessoas negras teve um crescimento 18,2%, enquanto de pessoas não negras diminuiu 12,2%. O risco de um jovem negro ser vítima de homicídio é 2,6 vezes maior do que um jovem branco. “Jovens e negros do sexo masculino continuam sendo assassinados todos os anos como se vivessem em situação de guerra”, aponta o Atlas.
Pessoas negras em protesto contra o genocídio
[endif]--No quesito gênero, o Atlas aponta que a mortalidade de mulheres negras aumentou 22%, enquanto a de não-negras caiu 7,4% entre os mesmos anos. Os dados apontam, ainda, que também cresceu a proporção de mulheres negras vítimas de mortes por agressão, passando de 54,8% no ano de 2005, para 65,3% no ano de 2015.
Estes números explicitam a desproporção entre mortes de pessoas negras e não-negras, além de sugerir reflexão sobre o assunto. Segundo o diretor-executivo da base brasileira da Anistia Internacional, Atila Roque, esses índices são resultado da política de criminalização da pobreza e de uma indiferença da sociedade em torno de um "genocídio silenciado" que comumentepermanece impune. Essa política de criminalização da pobreza e a indiferença social citados por Atila Roque têm herança nas primeiras situações que originaram o processo de formação do povo brasileiro.
O sistema escravocrata advindo das relações de poder econômico foi instaurado quando o homem branco (e burguês) definiu a raça negra como inferior. Na época colonial os europeus sequestraram, trancafiaram e desumanizaram povos do continente africano, ignorando, inclusive, necessidades básicas como alimentação e saúde. As mulheres negras escravizadas, por sua vez, também sofriam com estupros advindos dos colonos e, com isso, acabavam engravidando. Esta violência também contribuiu coma miscigenação e foi o iníciodo apagamento étnico produzido pela hegemonia branca. E, desta forma, foi construídaa concepção de que a existência negra é inferior e que pessoas negras existem para servir aos brancos.
Stephanie Ribeiro, colunista da Revista Marie Claire Brasil e militante do movimento negro aponta os desafios de ser uma mulher negra no Brasil. “Ser mulher negra é antes de tudo ser uma guerreira. O nosso discurso, às vezes, é no sentido de não precisar ser forte sempre e, se a maioria dos jovens mortos no Brasil são negros, pode ter certeza que são as mães negras que estão chorando por eles; se a maioria carcerária é negra, nós somos atingidas indiretamente, porque são filhos, companheiros, irmãos, pais e, diretamente, porque o número de mulheres negras presas vem aumentando”.
A militante também fala sobre as origens da violência. “A nossa história é marcada pelos estupros dos senhores, pelo nosso corpo sendo visto como objeto a serviço da escravidão e, assim, mais gerador de negros para serem escravizados. Hoje ainda nos deparamos com assédio e objetificação. Lidamos com a lógica capitalista que nos faz ter os menores salários e sofrer até em favelas, ocupando sempre as piores áreas”, posicionou-se.
Darcy Ribeiro destaca em sua obra “O Povo Brasileiro”, que o racismo velado, a discriminação utilizada de maneira sutil, deixa a pessoa negra sem armas para combatê-lo, fazendo assim, com que o racismo seja naturalmente assimilado pela sociedade. Na medida em que o indivíduo, em sociedade, interioriza essa lógica racista, são criadas barreiras que impedirão em longo prazo e em larga escala a institucionalização da democracia social e racial. “Ou bem há democracia para todos, ou não há democracia para ninguém”, cita o autor.
O artigo 5º da Constituição de 1988 declara que todos são iguais perante a Lei. Entretanto, ao constatar esses dados sobre o jovem negro no Brasil, nota-se a frequente presença da desigualdade no país. Contudo a evolução da Legislação brasileira constata que as lutas sociais passaram a ter reflexos no âmbito jurídico do país, que podem ser comprovados, tornando a prática de racismo crime inafiançável e imprescritível.
[endif]--Nos últimos 15 anos, com medidas implantadas pelo governo federal, o jovem pobre e negro obteve mais oportunidades de crescimento profissional, acadêmico e pessoal. No entanto, ainda há um paradoxo existente. Segundo Atila Roque “a inclusão é o menor dos fatores considerados, na medida em que os interesses econômicos continuam tomando a frente das prioridades sociais da classe dominante, desenvolvendo, ainda, desigualdades sócio-econômicas, sobretudo se tratando da dicotomia existente entre negros e brancos”.
Jovens negros tiveram mais oportunidades de entrar na faculdade através das cotas raciais
Veluma Lara, militante do movimento negro e estudante de Artes Cênicas da UnB relata o racismo existente no país. “No Brasil o racismo é velado e escancarado, só não vê quem não quer. Decorado de mini série, piada, prosa e poesia! Somos animalizados, sexualizados, prostituídos, marginalizados, humilhados, somos pobres. Somos a empregada, o porteiro, o jardineiro... E se tem um negro rico logo nos empurram a meritocracia, nos chamando de incapazes, ‘porque se um conseguiu, todos conseguem’, como se não existisse um sistema nos puxando dez passos pra trás quando conseguimos dar um passo à frente. Até desodorante pra gente ‘preta’ tem acredita?! ‘Preto fede’, é o que dizem. E quando um ‘preto’ reclama? ‘Tinha que ser preto’, afirmam... Nos invalidam! Nos chamam de agressivos, mau humorados, barraqueiros, radicais. Ser mulher e preta, então?! Nem me fale! Sou oprimida por ser mulher e oprimida por ser preta. Mas, sabe, se eu pudesse escolher, escolheria ser mulher e ‘preta’. Não suportaria viver às custas da opressão de outrem. Eu posso lutar”, afirma.
Neste contexto sócio-cultural alarmante do jovem negro no Brasil, a música de Elza Soares faz sentido diante todas essas informações. Afinal, a carne mais barata do mercado é mesmo a carne negra.
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